segunda-feira, 26 de novembro de 2018

É o Vale do Jequitinhonha pobre?


 Passei os últimos meses vivendo na cidade de Itinga, no médio Jequitinhonha. Como já publiquei neste blog, desenvolvi ali um projeto cultural pintando as casas do vilarejo rural de Pasmadinho, pertencente ao referido município. Isso permitiu-me uma vivência intimista e profunda com as pessoas e cultura local, e certamente possibilitou-me uma visão muito mais lúcida acerca da região.
 Desde criança tenho ouvido falar da miséria degradante do Vale do Jequitinhonha, apontada como uma das regiões mais pobres do Brasil. Esta é a visão que se apregoa e se vê instituída na ideia das pessoas, muito em função de uma concepção midiática. A pobreza do Vale tem sido, desde muito, escancarada, mostrada  e mesmo explorada! Mas sempre intrigou-me o apelo quase obsessivo observado nas pessoas provenientes do Vale, seu apego apaixonado pela terra natal, e sua angústia em, forçadas por situações outras, verem-se longe de sua raiz. Como alguém pode trazer tamanha ternura por um lugar dito pobre, infértil, triste e problemático? 



 Ao me ver envolto em assuntos de ordem cultural, desde que, na juventude, comecei a traçar esta trajetória no caminho da arte, percebi que um lugar tão destituído de recursos não poderia produzir tanta coisa maravilhosa como eu começara a conhecer em matéria de arte e artesanato, música e poesia, teatro, dança e cultura popular. Ou seja, alguma coisa nesta informação_ “vale da miséria”_ estava discrepante! Levei anos e anos até me decidir a fazer esta ação artística neste local, para perceber, enfim, sua realidade.

 Conheci, tendo chegado lá no inverno, uma região seca. A seca se configura no aspecto da pobreza difundida nos meios de comunicação. Sem água, a vida é improvável. A natureza, já adaptada a esta situação, oferece pouco, já que suas plantas nativas e vigorosas, em grande parte da caatinga são, em sua maioria, brutas e infrutíferas. Os antigos cursos d’água estão esgotados, e toda a fonte vital transita em torno do rio Jequitinhonha. Ao deparar-me com o semiárido e a vegetação ressequida deste ecossistema, a primeira impressão que tive era que seria impossível viver ou extrair alguma coisa dali. No entanto, lá estavam as casas e as pessoas, nos lugares mais inacreditáveis! E isso me mostrou o poder de adaptação do ser humano.



 Eu já havia escrito em alguma publicação que a riqueza da Noruega não se deve apenas a uma questão de recursos, mas porque as pessoas sabem aproveitar, com alegria, cada raio de sol. O mesmo observei lá! Uma vez que as pessoas do Vale aprenderam a lidar com o pouco oferecido pela terra seca, e a domarem esta natureza quase hostil, sabem o sabor de cada manga nascida no pé. E o valor de cada ovo botado por uma galinha, cada cria de alguma criação, cada melancia nascida na rama. Não há o esbanjamento inconsequente e dispendioso observado nas cidades ou locais farturentos. Nem o desdém proveniente dos excessos. A vida, por ser simples, consegue ter um sentido que muitas vezes todas as conquistas da ambição desenfreada não conseguem preencher. A água aqui é  celebrada, bebida com alento, e senti-la entrando nas veias é uma sensação inexplicável! O gosto de cada refeição, cada fruto, é deliciosamente perceptível e palatável; Nas solitárias lonjuras das montanhas pedregosas, receber a visita de alguém em casa é um prazer acolhedor e solene; As crianças ainda brincam livres, brincadeiras que eu julgava nem mais existir; Num lugar tão pleno, consigo agora compreender o vazio observado nas pessoas que, sendo de lá e vivendo fora, não conseguem se abastar em tudo quanto haja nos grandes centros. Existe, sim, a pobreza, e isso não é uma exclusividade do Vale. E é uma pobreza atroz, como o é em qualquer lugar! Mas existe a solidariedade de quem está disposto a dividir o pouco de seu feijão andu. Um pouco sempre suficiente! As necessidades não são extravagantes, e por isso a vida que seria, para a maioria de nós, sacrificante e insuportável, é para eles normal e magnífica. As pessoas são fortes, lutadoras, perseverantes, sonhadoras e incansáveis. E sorver ao máximo o néctar de tudo quanto o lugar possa oferecer, tornou essas pessoas criativas, sábias, humildes e geniais. Por isso tantos artistas, artesão, poetas e trovadores. E o lavrador, por excelência!





 Se você é do tipo que equipara riqueza com o conjunto de bens que se tenha ou se acumule, continuará achando o Vale do Jequitinhonha pobre. E ao conhece-lo, achará que pobre ainda é pouco! Mas se você aprendeu o valor( imensurável) dos pormenores, das coisas consideradas triviais, da grandeza do simples, da suficiência das pequenas coisas, conhecerá um lugar maravilhoso, repleto de beleza e riqueza em cada detalhe. Mesmo a seca cinzenta do semiárido é linda, sobretudo quando oferece, nas mãos sertanejas, recursos que nós outros nem acreditaríamos existir.

 Porém, enquanto eu ainda estava lá, veio a chuva. E tudo mudou! A natureza se vestiu de verde, as lavouras se eclodiram abundantemente, as flores brotaram, e mesmo o sorriso das pessoas ficou mais resplandecente.  O solo aparentemente morto mostrou toda sua força latente em nutrientes e vida. E assim pude conhecer uma outra realidade, quase nunca dita, de uma região que, sendo praticamente virginal, possui uma natureza preciosa.










Com tantos tesouros naturais, históricos e culturais, dizer, portanto, que o vale seja pobre, é considerar toda uma ampla realidade por um único aspecto. Seria uma forma muito parcial e precária de enxergar um contexto muito mais diverso. O vale não é pobre, embora possua, sim, uma série de carências, sobretudo relacionadas a descasos que dizem respeito a nós, seres humanos. Vejo que pobre é nossa capacidade de compreender e assimilar as diferenças, nossa busca inesgotável de coisas desnecessárias e mesmo sem sentido, nossa prepotência pedante, nossa falta de benevolência, nosso senso crítico, nossa insensibilidade, nossa desumanidade em abusar e explorar pessoas ou locais por serem simples. Não existe pior pobreza do que aquela amparada pelo conforto dourado. Nós somos pobres. O vale não...


Fotos: Wederson Moraes